O Povo brasileiro : Apontamentos e conclusões
Entender o sentido do que somos hoje é muito mais do que um desafio, constituísse num longo e detalhado processo
de trabalho. A reflexão sobre a nossa formação nos remete às nossas origens, à história que como brasileiros, fomos construindo.
A realidade na qual nos encontramos traz reflexões e pontos de vista provenientes de outros contextos.
No que
tange esse desafio de nos tornar "explicáveis" e/ou "aceitáveis", Darcy Ribeiro indica um conjunto teórico a partir do nosso
contexto histórico. Ribeiro reúne um conjunto de pesquisas que culminam em uma teoria do Brasil até então inédita, subjacente
à descrição desta teoria, está sua preocupação em entender por que caminhos passamos, que nos levaram a diferenças sociais
tão profundas no processo de formação nacional.
Os brasileiros se sabem, se sentem e se comportam como uma só
gente, pertencente a uma mesma etnia, será? Essa unidade não significa porém nenhuma uniformidade, ou homogeneidade. O homem
se adaptou ao meio ambiente e criou modos de vida diferentes, tolerância, convivência, civilidade, etc. A urbanização contribuiu
para uniformizar os brasileiros, sem eliminar suas diferenças. Fala-se em todo o país uma mesma língua, um mesmo idioma só
diferenciado por sotaques e gírias regionais. Mais do que uma junção de etnias formando uma etnia única, a brasileira, o Brasil
é um povo nação, ajustado e/ou adaptado em um território próprio para nele viver seu destino.
Foi essa gente composta
de índios, de negros, de mulatos, que fundou esse país. Ao longo da costa brasileira se encontraram duas visões de mundo completamente
opostas: a "selvageria" e a "civilização". Concepções diferentes de mundo, da vida, da morte, do amor, se chocaram. Para os
europeus os indígenas pareciam belos seres inocentes, que não tinham noção de "pecado", porém com um grande defeito: eram
"vadios", preguiçosos não produziam nada que pudesse ter valor comercial. Serviam apenas para ser vendidos como escravos.
Com a descoberta de que as matas estavam cheias de pau-brasil, mudaram o foco de seus interesses. Era necessária mão-de-obra
para retirar a madeira.
Aconteceu uma forma de miscigenação ao meu entender um tanto quanto opressora, onde houvesse
algum europeu alojado na costa em contato com as "naus", e que pudesse viabilizar o fornecimento de mercadorias das quais
os indígenas já haviam se tornado até certo ponto, dependentes, cada aldeia levava uma moça para casar-se com os respectivos
europeus. Se ele "transasse" com a moça, então ele se tornava "cunhado", e passava a ter sogro, sogra genros, passava então
a ser parente. Então o português e os europeus (invasores), conseguiram desse modo pôr milhares de índios a serviço deles,
para a extração e carregamento de pau-brasil.
O branco penetrou na cultura indígena através deste tal "cunhadismo",
por meio desse costume foi iniciada a formação do povo brasileiro. E da união das índias com os europeus nasceu um povo mestiço
que efetivamente ocupou o Brasil. Na barriga das mulheres indígenas cresciam indivíduos que não eram indígenas, mulheres emprenhadas
pelos portugueses, pariam meninos e meninas que sabiam que não eram índios e nem europeus, pois os europeus não os aceitavam
como iguais. O que eram então ? Eram uma gente vazia? O que significavam eles do ponto de vista étnico? Estes mestiços consistiam
a "matéria - prima", "a substância" com a qual se formaria no futuro o povo brasileiro.
É admissível até que a
colonização pudesse ser feita através do desenvolvimento dessa prática, tinha o defeito, porém (para os portugueses), de ser
acessível a qualquer europeu desembarcado junto às aldeias indígenas. Isso efetivamente ocorreu, pondo em movimento um número
crescente de navios e incorporando os indígenas ao sistema mercantil de produção. Para Portugal é que representou uma ameaça,
já que estava perdendo sua conquista para armadores franceses, holandeses, ingleses e alemães, cujos navios já sabiam onde
buscar sua carga.
Sabemos que um dos primeiros e principais núcleos povoadores surgiu em São Paulo, chefiado pelo
português João Ramalho, alguns afirmam que ele havia chegado ao planalto paulista antes da chegada de Cabral. Os registros
da época supõem que ele teve mais de trinta mulheres índias e quase oitenta filhos(as) mestiços. A ocupação e o conseqüente
povoamento se iniciaram a partir do litoral. Na Bahia, Pernambuco, Espírito Santo e no Rio de Janeiro, em toda a extensão
litorânea os europeus geraram um exército de mestiços, chamados de mamelucos pelos jesuítas espanhóis, por causa da aparência
agreste e rústica e da violência com que capturavam e escravizavam os indígenas, de quem eram descendentes.
Esses
mamelucos, aprenderam o nome das árvores, dos bichos, batizaram os rios, aprenderam e dominaram superficialmente a sabedoria
milenar dos índios. Em dez mil anos os índios aprenderam a viver na floresta tropical, identificaram tipos de árvores frutíferas,
domesticaram muitas plantas, essas que conhecemos hoje: mandioca, milho, amendoim, dentre muitas outras. Há duas contribuições
fundamentais nesse encontro: uma mestiçagem do corpo e uma mestiçagem da cultura. Em nós vivem milhões de índios, índios que
foram abatidos porque a brutalidade do branco com o índio foi terrível, abatidos porque o branco europeu tinha muitas doenças.
Considera-se que na ocasião em que chegaram os portugueses em terras brasileiras haviam cinco milhões de indígenas,
dois séculos mais tarde não chegavam a dois milhões. Em cinco séculos desapareceram para sempre cerca de oitocentas etnias.
Eram povos de diferentes culturas, que ocupavam amplos territórios de características geográficas distintas. Hoje, os sobreviventes
somam duzentos e setenta mil habitantes ou talvez menos.
Era uma sociedade que, por ser mais pobre, era também
mais igualitária. A miscigenação era livre, porque quase não havia entre eles quem não fosse mestiço. Até meados do século
XVIII essa gente falava uma língua aprendida com os índios, o " nheengatu " . Um jeito de falar tupi com boca de português,
inventado pelos padres jesuítas.
Em sua peregrinação, os paulistas foram ampliando o tamanho do Brasil, na esperança
de encontrar minérios, eles buscavam no fundo das matas a única mercadoria que estava ao seu alcance: os indígenas. As bandeiras
partiam de São Paulo levando mais de duas mil pessoas, homens e mulheres, famílias inteiras de mestiços que iam fazendo roças
pelo caminho, fundando vilarejos, caçando e pescando para comer, ignoraram as fronteiras portuguesas para aprisionar os habitantes
da terra, e vendê-los como escravos aos engenhos do nordeste. E não pouparam sequer os índios convertidos à fé católica que
habitavam as missões jesuíticas do sul do país e do Paraguai.
No final do século XVII, a descoberta de ouro pelos
paulistas nas terras do interior modificou os caminhos do Brasil Colônia, em menos de dez anos, chegaram à região das Minas
mais de 30 mil pessoas, vindas de todo o país, paulistas, baianos, senhores de engenho falidos e, sobretudo, escravos; muitos
morriam de fome com o ouro nas mãos, já que não havia o que comer. Os tropeiros asseguravam a sobrevivência vendendo comida
e panos de algodão. Atraídos pelo ouro, muitos se fixaram no cruzamento das rotas de comércio e estabeleceram os primeiros
povoamentos e assim abriram caminho para a ocupação do interior do país.
Setenta anos depois, a capitania de Minas
Gerais já era a área mais populosa da América, com trezentos mil habitantes, pessoas que vinham atrás de fortuna, como os
garimpeiros. A descoberta do ouro mudou completamente a vida da colônia. A mineração enfraqueceu a indústria açucareira, que
era a principal atividade econômica. A sociedade estava estruturada nos moldes da fazenda, da casa-grande e da senzala. O
país progredia graças ao trabalho escravo de três milhões de negros. O açúcar, no entanto, começou neste período a sofrer
concorrência das Antilhas.
A grande contribuição da cultura portuguesa aqui foi fazer o engenho de açúcar movido
por mão-de-obra escrava ou seja, foi introduzir a utilização da mão de obra escrava e o tráfico negreiro traçando assim um
modo de produção escravista ou escravocrata.
Por isso, começaram a trazer milhões de escravos da África. O negócio
maior do mercado mundial era a venda de açúcar e depois a remessa de ouro (mercantilismo). Mas a despesa maior era a compra
de escravos. Os europeus iam à África e faziam grandes expedições de caça de negros, metade morria na travessia ou na brutalidade
da chegada, ou mesmo por meio do chamado "banzo", um estado psicológico que pode ser explicado como depressão, mas milhões
deles incorporaram-se ao Brasil.
Estes negros eram provenientes de povos diferentes, com dialetos locais, línguas
locais, o único modo de um negro falar com o outro era aprender a língua do seu capataz, que não desejava ensiná-los a língua
local temendo a ocorrência de futuras fugas e a perda do controle da "mercadoria", genialmente esses negros aprenderam a falar
português ora com auxilio de outros empregados da casa grande, ora com auxilio de um capataz mais flexível, ora observando
e escutando etc. Quem difundiu o português brasileiro foi o negro, que se concentrou na área da costa de produção do açúcar
e na área do ouro. Sabemos que com os negros escravos vinham as escravas mulheres e meninas, muitas apartadas dos maridos,
noivos e filhos, custavam o preço de dois ou três escravos de trabalho, os senhores de engenho queriam muito comprá-las, e
os capatazes também, para explora-las tanto no trabalho da casa grande como sexualmente, logicamente essas mulheres e meninas
engravidavam, e quem era essa criança? Não era africana, não era índia e não era européia, essa criança só encontraria uma
identidade no dia em que se definisse o que é o brasileiro.
Darcy Ribeiro começa a descrever como foi acontecendo
a "gestação do Brasil"; e dos brasileiros como um povo. Nessa reconstituição ele fala da união ocorrida entre portugueses,
índios e negros, matrizes étnicas do brasileiro. Um povo novo que, no dizer de Darcy, se enfrentam e se fundem, fazendo
surgir, "num novo modelo de estruturação societária". Para ele, essa mestiçagem fez nascer um novo gênero humano. Nova gente,
mestiça na carne e no espírito. Segundo Darcy essa gente fez-se diferente: "Novo porque surge como uma etnia nacional,
diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente mestiça, dinamizada por uma cultura sincrética e singularizada
pela redefinição de traços culturais delas naturais. Também novo porque se vê a si mesmo e é visto como uma gente nova, um
novo gênero humano diferente de quantos exista. Povo novo ainda, porque é um novo modelo de estruturação societária, que inaugura
uma forma singular de organização sócio-econômico, fundada num tipo renovado de escravismo e numa servidão continuada ao mercado
mundial. Novo, inclusive, pela inverossímil alegria e espantosa vontade de felicidade, num povo tão sacrificado, que alenta
e comove a todos os brasileiros. (1996, p. 19) Ao oposto do que se podia idealizar, um conjunto tão variado de matrizes
formadoras não resultou num conjunto multiétnico. Diz: "... apesar de sobreviverem na fisionomia somática e no espírito
dos brasileiros os signos de sua múltipla ancestralidade, não se diferenciaram em antagônicas minorias raciais, culturais
ou regionais, vinculadas a lealdades étnicas próprias e disputantes de autonomia frente à nação". (1996, p. 20) Com pequena
exceção a grupos que sobrevivem de maneira isolada, que mantendo seus costumes, mas que, segundo Darcy, não podem afetar a
macroetnia em que se encontram. Dessa unidade étnica básica, ele não quer propor uma uniformidade entre os brasileiros,
ele esclarece está questão distinguindo três forças diversificadoras: a ecológica, a econômica e a imigração. Estas formam
os fatores que tornaram presente os diferentes modos de ser dos brasileiros, espalhados nas diversas regiões do território
brasileiro. Segundo Darcy: "A urbanização, apesar de criar muitos modos citadinos de ser, contribuiu para ainda mais
uniformizar os brasileiros no plano cultural, sem, contudo, borrar suas diferenças. A industrialização, enquanto gênero de
vida que cria suas próprias paisagens humanas, plasmou ilhas fabris em suas regiões. As novas formas de comunicação de massa
estão funcionando ativamente como difusoras e uniformizadoras de novas formas e estilos culturais". (1996, p. 21) Darcy
Ribeiro sugeriu deste modo que, apesar das diferentes matrizes "racionais" nas quais se formaram os brasileiros, também por
questões culturais e por situações regionais, "os brasileiros se sabem, se sentem e se comportam como uma só gente, pertencente
a uma mesma etnia". Formamos uma etnia nacional única, um só "povo incorporado". Concebeu a história brasileira dividida
em cinco formadores regionais, a cultura crioula, cabocla, gaúcha, caipira e a cultura sertaneja. Divididas em territórios
específicos, a cultura crioula, desenvolveu-se no litoral nordestino; a caipiras, que se formou nas áreas ocupadas pelos mamelucos
paulistas; a sertaneja, desenvolvida na área que se desdobra desde o Nordeste até os cerrados do Centro-Oeste; a cabocla,
que correspondente à população amazônica e a gaúchas, formada no sul do país. Ressalva que este mesmo processo ocorreu
consolidando as incompatibilidades sociais de caráter traumático. Diz: "A mais terrível de nossas heranças é esta de levar
sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que
encandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem
às mãos". (1996, p.120) Para Darcy formamos a maior presença neolatina no mundo, uma "nova Roma". Segundo ele, melhor,
porque racialmente lavada em sangue índio e em sangue negro. Esta nossa singularidade nos condena a nos inventarmos a nós
mesmos e desafiados a construir uma sociedade inspirada na propensão indígena para o convívio cordial e para a reciprocidade
e a alegria saudável do negro extremamente alterativo. Darcy Ribeiro trata das características iniciais do território
brasileiro, das terras encontradas pelos portugueses que desembarcaram pela primeira vez no ano 1500 do calendário europeu,
estas terras se encontravam povoadas por um grande número de indígenas que viviam por toda superfície do Brasil. Segundo
Darcy: "Eram, tão-só, uma miríade de povos tribais, falando línguas do mesmo tronco, dialetos de uma mesma língua, cada um
dos quais, ao crescer, se bipartia, fazendo dois povos que começavam a se diferenciar e logo se desconheciam e se hostilizavam"
(1996, p. 29). Essas tribos aqui encontradas eram na sua maioria da família tupi, elas se encontravam nos primeiros passos
da revolução agrícola na escala da evolução cultural. Já conseguiam domesticar diversas plantas. Com o cultivo da terra garantiam
a subsistência do ano inteiro. É importante lembrar que as aldeias possuíam uma estrutura igualitária de convivência sem estratificação
direta. Mas, devido a colonização de suas terras, as tribos se chocavam em guerra umas com as outras o mesmo aconteceu na
colonização do território africano. Ao contrário do modelo constituído pelas tribos indígenas no Brasil, os portugueses
invasores possuíam relações sociais baseadas na estratificação das classes, tinham uma velha experiência como civilização
urbana. Com eles veio a Igreja católica que exerceu uma grande influência no processo de formação sócio-cultural do povo brasileiro.
Na visão de Darcy, a Igreja exerceu um forte poder de mando, influenciando na vida dos indígenas e negros.
Desde
o início houve uma fração de jesuítas que tinha uma utopia para os índios, fazê-los pios seráficos, religiosos. Eles achavam
que era o jeito de fazer o Paraíso na Terra. A religião estabeleceu-se de fato com as filhas das índias e das negras, as mestiças,
que, não podendo satisfazer-se com a religião dos índios e dos negros, aceitavam e gostavam das novenas, das ladainhas, das
missas, das procissões, assim surgindo esse catolicismo santeiro e festeiro. No contexto mundial Portugal entrava na disputa
pelos novos mundos, estimulado pelas forças transformadoras da revolução mercantil. Diz Darcy: "Esse complexo do poderio
português vinha sendo ativado, nas últimas décadas, pelas energias transformadoras da revolução mercantil, fundada especialmente
na nova tecnologia, concentrada na nau oceânica, com suas novas velas de mar alto, seu leme fixo, sua bússola, seu astrolábio
e, sobretudo, seu conjunto de canhões de guerra (...) Era a humanidade mesma que entrava noutra instância de sua existência,
na qual se extinguiriam milhares de povos, com suas línguas e culturas próprias e singulares, para dar nascimento às macroetnias
maiores e mais abrangentes que jamais se viu". (1996, p.38).
Era a superação da estado feudal, o processo
civilizatório no seu momento mercantil. Além de protagonizarem o inferno da expansão territorial político-econômico, se intitularam
propagadores da unidade dos homens numa só cristandade. De acordo com Darcy:
"Eles se davam ao luxo de propor-se
motivações mais nobres que as mercantis, definindo-se como os expansores da cristandade católica sobre os povos existentes
e por existir no além-mar. Pretendiam refazer o orbe em missão salvadora, cumprindo a tarefa suprema do homem branco, para
isso destinado por Deus: juntar todos os homens numa só cristandade, lamentavelmente dividida em duas caras, a católica e
a protestante". (1996, p.39) Para o índio que passava a conviver com aquela situação nova não foi nada simples compreender
o que representava aqueles acontecimentos novos. O fato é que desta colisão de culturas, surgiram concepções que os índios
estarrecidos por certo tempo sustentaram, como a de que os recém chegados europeus eram deuses. Não demorou muito para se
decepcionarem. Os indígenas perceberam que os recém chegados do mar não passavam de enganadores, mentirosos e principalmente
exploradores, lhes traziam pequenos utensílios e em troca lhes tiravam a alegria de viver, lhes entupiam de doenças que os
dizimava aos milhares. Darcy Ribeiro assinala as duas visões de mundo que se chocavam. Para os conquistadores essa nova
terra era um espaço de exploração em ouro e glórias, na visão dos índios, "o mundo era um luxo de se viver, tão rico de aves,
de peixes, de raízes, de frutas, de flores, de sementes, que podiam dar as alegrias de caçar, de pescar, de plantar e colher
a quanta gente aqui viesse ter". (1996, pp. 44-45) Enquanto os brancos não mediam esforços para alcançar as riquezas que
lhes interessavam, os índios acreditavam que a vida era dádiva de deuses bons. Na perspectiva de Darcy Ribeiro os brancos
para os índios, eram aflitos, aborrecidos e/ou angustiados demais. Para os brancos, a vida era uma sofrida obrigação, e todos
estavam condenados ao trabalho e subordinados ao lucro, enquanto que, para os índios, "a vida era uma tranqüila função de
existência, num mundo dadivoso e numa sociedade solidária".
Outras instituições que tiveram grande influência
na gestação étnica do Brasil foram as donatarias e as reduções, onde os índios viviam submetidos às ordens dos missionários.
No ponto de vista de Darcy o Brasil tem sido, ao longo dos séculos, um terrível moinho de gastar gentes. O fato é que se gastaram
milhões de índios, milhões de africanos e milhões de europeus. Comenta: "Foi desindianizando o índio, desafricanizando
o negro, deseuropeizando o europeu e fundindo suas heranças culturais que nos fizemos. Somos, em conseqüência, um povo síntese,
mestiço na carne e na alma, orgulhoso de si mesmo, porque entre nós a mestiçagem jamais foi crime ou pecado. Um povo sem peias
que nos atenham a qualquer servidão, desafiado a florescer, finalmente, como uma civilização nova, autônoma e melhor". (1995,
p.13) Nossa matriz negra foi responsável por remarcar a amálgama racial e cultural brasileira com suas cores mais fortes.
Diz Darcy Ribeiro:
"Nossa matriz africana é a mais abrasileirada delas. Já na primeira geração, o negro, nascido
aqui, é um brasileiro. O era antes mesmo do brasileiro existir, reconhecido e assumido como tal. O era, porque só aqui ele
saberia viver, falando como sua língua do amo. Língua que não só difundiu e fixou nas áreas onde mais se concentrou, mas amoldou,
fazendo do idioma do Brasil um português falado por bocas negras, o que se constata ouvindo o sotaque de Lisboa e o de Luanda".
(1995, p. 14)
Darcy assinala com grande lamento que "nossos patrícios negros" sofreram e ainda sofrem o drama
de sua penosa ascensão de escravo a assalariado e a cidadão, sobre a dureza do preconceito racial. O processo de formação
do povo brasileiro foi caracterizado constantemente por situações de conflitos.Darcy Ribeiro Caracteriza o entendido entrechoque
dos contingentes índios, negros e brancos dentro do quadro de conflitos não puros, pois, segundo ele, sempre ocorreu uma combinação
entre uns e outros. Para Darcy uma nova situação se impôs com a chegada do dominador europeu, tendo em vista que este queria
buscar de todas as formas impor sua hegemonia nessas terras. Os conflitos interétnicos que aqui existiam, sem maiores conseqüências,
agora de maneira mais ampla, foram surpreendidos por uma nova situação de guerra irremediável. Nesse confronto, as forças
que se chocam são muito desiguais:
"De um lado, sociedades tribais, estruturadas com base no parentesco e outras
formas de sociabilidade, armadas de uma profunda identificação étnica, irmanadas por um modo de vida essencialmente solidário.
Do lado oposto, uma estrutura estatal, fundada na conquista e dominação de um território, cujos habitantes, qualquer que seja
a sua origem, compõem uma sociedade articulada em classes, vale dizer, antagonicamente opostas mas imperativamente unificadas
para o cumprimento de metas econômicas socialmente irresponsáveis. A primeira das quais é a ocupação do território. Onde quer
que um contingente etnicamente estranho procure, dentro desse território, manter seu próprio modo tradicional de vida, ou
queira criar para si um gênero autônomo de existência, estala o conflito cruento". (Darcy Ribeiro, 1996, p.169)
Entre
os momentos conflituosos Darcy aponta para os conflitos entre os invasores, descrevendo que entre colonos e jesuítas houve
uma longa guerra sem quartéis, marcada por componentes classistas, racistas e étnicos, O autor situa as motivações de colonização
dos jesuítas num plano distinto ao da colonização espanhola e portuguesa. Um outro enfrentamento altamente conflituoso
é o que se deu por conseqüências predominantemente raciais, entre as três matrizes observamos um sentimento de preconceito.
Outra situação é a de caráter fundamentalmente classista, que configura a luta entre proprietários e as massas trabalhadoras.
Darcy, ao que parece, vê essas lutas identificando-as como o recrutamento de mão-de-obra para a produção mercantil.
No
processo de formação sociocultural do Brasil ele vê a organização do que ele chama de empresas. A empresa escravista, ele
a vê como a principal, latifundiária e monocultora que foi sempre altamente especializada e essencialmente mercantil. Outra,
já como forma alternativa de colonização, foi a empresa jesuítica. Esta estava fundada na mão-de-obra servil dos índios. Uma
terceira, que tinha um alcance social bastante considerável, foram as múltiplas microempresas de produção de gêneros de subsistência
e de criação de gado, baseada em diferentes formas de aliciamento de mão-de-obra. Estas incorporam os mestiços de europeus
com índios e negros dando corpo ao que viria a ser a essência do povo brasileiro.
Darcy diz que essas empresas,
cada uma com seus fins particulares,atuaram para garantir o êxito do empreendimento colonial português no Brasil. Uma quarta
empresa foi composta pelo núcleo portuário de banqueiros armadores e comerciantes de importação e exportação. Formavam o componente
dominante da economia colonial e o mais lucrativo dela. Ainda sobre o processo de formação sociocultural, ele organiza uma
visão de conjunto do processo de urbanização brasileira. Segundo Darcy, o Brasil nasceu já como uma civilização urbana, separada
em conteúdos rurais e citadinos.
Ele organizou um quadro da questão agrária brasileira, onde comenta as dimensões
espantosas dos latifúndios, a questão do monopólio da terra e a monocultura. Relacionou o temível êxodo rural com o inchaço
das cidades em conseqüência causando a miséria da população urbana. Para Darcy formou-se um modelo político-econômico que
estratifica a população brasileira.
Para Darcy formou-se um modelo político-econômico que estratifica a população
brasileira. Diz: "A estratificação social gerada historicamente tem também como característica a racionalidade resultuante
de sua montagem como negócio que a uns privilegia e enobrece, fazendo-os donos da vida, e aos demais subjuga e degrada, como
objeto de enriquecimento alheio. Esse caráter intencional do empreendimento faz do Brasil, ainda hoje, menos uma sociedade
do que uma feitoria, porque não estrutura a população para o prenchimento de suas condições de sobrevivência e de progresso,
mas para enriquecer uma camada senhorial voltada para atender às solicitações exógenas". (1996, p. 212)
Sobretudo,
a distância social entre ricos e pobres é, para Darcy Ribeiro, uma condição muito assombrosa, somando-se a isso a discriminação
sofrida pelos negros, mulatos e índios. O problema racial constitui-se num sério problema para o Brasil. De maneira mais seria
é aquele que pesa sobre os negros, a mais árdua foi e, ainda é, a conquista de um lugar e de um papel de participante legítimo
na sociedade nacional. No final do século XIX, a crise de desemprego que ocorreu na Europa trouxe para o Brasil sete milhões
de imigrantes. Eles vinham para trabalhar nas plantações de café, o principal produto de exportação da época. Acabaram ocupando
o lugar dos mestiços e escravos libertos, como mão-de-obra assalariada. Os europeus se fixaram principalmente em São Paulo
e nas cidades do sul do país, onde revigoraram a vida local e promoveram o primeiro surto de industrialização do país.
Ainda
hoje, comenta haver a mentalidade assimilacionista que leva os brasileiros a supor e desejar que os negros desapareçam pelo
"branqueamento" progressivo. Para Darcy a característica distintiva do racismo brasileiro é que ele não incide sobre a origem
racial das pessoas como por exemplo no Estados unidos, mas sobre a cor de sua pele. Para ele, a possibilidade de existência
de uma democracia racial está vinculada com a prática de uma democracia social, onde negros e brancos partilhem das mesmas
oportunidades sem qualquer forma de desigualdade, avalia o processo de estruturação como uma configuração diferente de quantas
haja, segundo ele só explicável em termos, históricos.
O Brasil destaca-se no mundo por sua péssima distribuição
de renda. Quando o indivíduo consegue melhorar de vida, é possível perceber que seus descendentes em uma ou duas gerações
cresceram em estatura, se refinaram, se educaram. Muitos estrangeiros que chegaram aqui no começo do século XX encontraram
condições de ascensão social mais rápida do que muitos brasileiros gerados aqui.
Em 1850 as regras de acesso
à propriedade rural mudaram, foi a primeira lei de terras do Brasil, já excludente. A simples ocupação e cultivo já não bastavam
para garantir a posse. O registro obrigatório acabou expulsando da terra os menos favorecidos e para onde migraram estes homens
e mulheres expulsos de terras que a muito tempo cultivavam? O país cresceu e se desenvolveu a partir de uma economia de
base agrícola, voltada para abastecer o mercado europeu. A maioria da população concentrava-se na zona rural. As cidade e
vilas funcionavam como entrepostos comerciais, onde o povo vivia da prestação de serviços aos fazendeiros. Somente nas regiões
mineradoras é que se implantou uma rede urbana independente da produção agrícola.
O Brasil só se tornou uma
nação de fato com a abolição da escravatura, que concedeu aos negros, ao menos no papel, a igualdade civil, emancipados mas
sem a terra que cultivaram por quase quatro séculos, os ex-escravos abandonaram as fazendas e logo descobriram que não podiam
ficar em nenhum lugar, as terras tinham dono. Saindo de uma fazenda caíam em outra, de onde eram, também, expulsos. A maior
parte dos escravos concentrou-se na periferia das cidades, nos bairros africanos. Ali eles criaram uma cultura própria, feita
de retalhos do que o povo africano guardou nos longos anos da escravidão, no caso da cidade do Rio de janeiro estabeleceram-se
nos casarões conhecidos como cortiços, de onde mais tarde foram expulsos pelo então prefeito Pereira Passos e se direcionaram
rumo aos morros onde já haviam se estabelecido os negros baianos remanescentes da guerra de canudos, surgia a primeira "favela"
o chamado "morro da favela"; pelos guerreiros de canudos que depois veio a se chamar morro da providência.
O
negro guardou sobretudo sua espiritualidade, sua religiosidade, seu sentido musical. É nessas áreas que ele dá grandes contribuições
e ajuda o brasileiro a ser um povo singular. Acredito que nada melhor para sintetizar a formação deste povo e concluir esta
resenha do que seguinte afirmação de Darcy Ribeiro: "Composta como uma constelação de áreas culturais, a configuração
histórico-cultural brasileira conforma uma cultura nacional com alto grau de homogeneidade. Em cada uma delas, milhões de
brasileiros, através de gerações, nascem e vivem toda a sua vida encontrando soluções para seus problemas vitais, motivações
e explicações que se lhes afiguram como o modo natural e necessário de exprimir sua humanidade e sua brasilidade. Constituem,
essencialmente, partes integrantes de uma sociedade maior, dentro da qual interagem como subculturas, atuando entre si de
modo diverso do que o fariam em relação a estrangeiros.
Sua unidade fundamental decorre de serem todas elas produto
do mesmo processo civilizatório que as atingiu quase ao mesmo tempo; de terem se formado pela multiplicação de uma mesma protocélula
étnica e de haverem estado sempre debaixo do domínio de um mesmo centro reitor, o que não enseja definições étnicas conflitivas".
(1996, p. 254)
"Os governos percebem que não têm que lidar simplesmente com sujeitos, nem mesmo com um povo, mas com sua população, com seus
fenômenos específicos, e suas variáveis próprias: natalidade, mortalidade, esperança de vida, fecundidade, estado da saúde,
incidência das doenças, forma de alimentação e habitat". (Foucault, 1984 p.28).
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