A raça "indesejável"
Preocupação com racismo contra negros e índios esconde o anti-semitismo histórico e presente
da sociedade brasileira
Carlos Haag
Edição Impressa 146 - Abril 2008
Pesquisa FAPESP -
© Miguel Boyayan |
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Maria Luiza Tucci Carneiro |
Eles se fingem de católicos, com cruzes e santinhos, tudo hipocrisia. Estou apavorado com o progresso dessa gente e revoltado
com a displicência das autoridades, não só do Brasil como das Américas”, escreveu um cidadão comum ao Deops avisando
sobre a presença de judeus no país. Detalhe: o ano da denúncia é 1947, dois anos após o fim da Segunda Guerra Mundial e da
derrocada do nazismo e do Estado Novo. Ainda assim, ajudar refugiados judeus era visto como “crime contra a nação”.
Ao mesmo tempo, ao longo da guerra, figuras corajosas como o embaixador brasileiro em Paris, Luiz Martins Souza Dantas, ou
a assistente da Embaixada do Brasil em Berlim, Aracy Carvalho (mais tarde, sra. Guimarães Rosa), desobedecendo ordens do regime
varguista, liberaram centenas de vistos para que judeus pudessem vir ao Brasil e sobreviver ao holocausto.
Pouco conhecido, em especial se comparado com a intensa preocupação com o racismo contra negros ou índios, o anti-semitismo
brasileiro só aos poucos vem sendo trazido à luz. Uma das responsáveis por isso é a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro,
da USP, autora de Preconceito racial no Brasil Colônia: cristãos-novos (Brasiliense, 1982); O
anti-semitismo na era Vargas: 1930- 1945 (Brasiliense, 1988, 2ª edição, 1995); O racismo na história do Brasil: mito
e realidade (Ática, 1994); O olhar europeu: o negro na iconografia brasileira do século XIX (co-autoria Boris
Kossoy, Edusp, 1994). Agora, ela é a organizadora do recém-lançado estudo O anti-semitismo nas Américas (Edusp, 744
páginas, R$ 98), ao mesmo tempo que coordena o projeto Arquivo Virtual sobre o Holocausto e o Anti-semitismo no Brasil,
que conta com apoio da FAPESP e está baseado no Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação (Leer-USP),
do qual ela é diretora. Milhares de documentos serão digitalizados e disponibilizados nesse banco de dados, que registrará
depoimentos de sobreviventes dos campos de concentração. Leia, a seguir, trechos da entrevista.
O Brasil foi um país racista ou ainda o é ? - O Brasil sempre foi e ainda é um país racista, apesar do
“negacionismo” por parte de alguns segmentos da sociedade brasileira, que insistem na veiculação da imagem do
país como um “paraíso racial”. Exatamente por convivermos com um racismo camuflado (e eu entendo o anti-semitismo
como uma forma de racismo) é que devemos estar atentos aos subterfúgios. Desinformação, interesses políticos, alianças de
compadrio, pesquisas históricas distorcidas e a mídia têm contribuído para fortalecer o senso comum, dificultando o exercício
da crítica e o respeito às diferenças. O fato de não observarmos em nosso cotidiano agressões físicas e públicas contra negros,
judeus ou ciganos não quer dizer que não aja racismo no Brasil, que pode variar desde o mais sutil sentimento de desconfiança
e de desprezo até o mais violento ato de hostilidade física. A existência em São Paulo de uma Delegacia de Crimes Raciais,
de o Direito brasileiro condenar e repudiar a prática do racismo e de constatarmos, cada vez mais, a adoção de cotas para
negros nas universidades demonstra que a nossa realidade, ainda que expressiva do fenômeno da mestiçagem, não
é tão cordial assim. Temos o diagnóstico, mas não chegamos ainda à profilaxia adequada, pontual.
Como analisar
o desenvolvimento do anti-semitismo ao longo da história nacional, em especial se comparado ao ódio aos judeus em países do
Primeiro Mundo, onde o sentimento é, em geral, mais “abertamente” declarado? A nossa “hipocrisia”
racial também se repete no anti-semitismo? - Acredito que o anti-semitismo deve ser analisado a partir de três vertentes:
das relações de interação/conflito entre judeus e não-judeus; enquanto um fenômeno psicológico-cultural característico dos
tempos modernos; e em fases distintas cujas características, muitas vezes, se superpõem. Esta abordagem é válida para qualquer
país, guardadas as devidas especificidades históricas. As formas e graus de manifestação do anti-semitismo variam de acordo
com as visões de mundo herdadas de um passado remoto e da persistência dos mitos políticos que interferem nas formas de manifestação.
É nos momentos de crise aguda que o anti-semitismo encontra condições para se manifestar, seja através de um discurso forjado,
seja explicitamente, como ocorre em alguns países do Primeiro Mundo. Em meus livros e pesquisas mais recentes tenho procurado
demonstrar que o anti-semitismo é um fenômeno, por excelência, multifacetado, com capacidade de deformar realidades e de se
metamorfosear como um camaleão. Mentira e dubiedade são componentes comuns aos discursos racistas, que transformam o ódio
em normas que todos devem observar. É nesta camuflagem que vejo instalada a “hipocrisia”, atitude característica
dos racistas em geral; sendo que a hipocrisia sempre se apresentou como uma ótima aliada da mentira.
Lei entrevista na íntegra em: http://www.revistapesquisa.fapesp.br/?art=3489&bd=1&pg=1&lg=
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